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Águas partidas

Quem não aprendeu a romper e aceitar os abandonos dos outros e desapegar-se do que for necessário, ainda precisa nascer para a vida como ela é. O que é o nascimento de uma criança, senão sair da barriga da mãe e cortar o cordão umbilical para começar a viver por si mesma, mesmo que ainda dependa da mãe! Não devemos nos agarrar demais a nada. Nossas raízes estão no céu e não na terra, e isso deve nos levar a nunca se apegar demais a nada aqui nesta vida. A vida é feita de etapas. Jamais poderemos experimentar coisas novas, se antes não rompermos com outras. Quando perdemos é porque coisas novas estão chegando.

Fernando Pessoa falando de desapego disse isso com verdade: “Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos que já se acabaram. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas possam ir embora. Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos. Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará. Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira”. É necessário maturidade para desapegar-se. A Bíblia diz: “Jamais digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Pois não é sábio perguntar assim” (Ec 7.10).

Enquanto aqui escrevo, tenho a sensação de que Deus nos criou para sermos itinerantes nesta vida. Todo lugar deve ser meu, ao mesmo tempo em que sou estranho em toda parte. Assim foi dito dos heróis da fé: “(homens dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos, pelos montes, pelas covas, pelos antros da terra” (Hb 11.38). Nossas raízes não estão embaixo da terra como as raízes das árvores, elas estão nos céus, onde está a nossa cidade e pátria permanente (Fp 3.20; Hb 13.14). Adão e Eva foram criados por Deus e colocados no jardim do Éden, mas de lá foram expulsos (Gn 3). Noé mudou seu estilo de vida construindo uma arca para a salvação de sua família (Gn 6-9). Depois disso, quando os homens intentaram construir uma cidade e uma torre cujo tope chegasse aos céus, com o propósito de se manterem todos no mesmo lugar e não serem espalhados pela terra, Deus confundiu suas línguas e os dispersou por toda a terra (Gn 11). Abrão saiu de sua terra e do meio de sua parentela (Gn 12); seus descendentes viveram peregrinando, desceram para o Egito e lá ficaram por quatrocentos anos. Mas Deus os libertou da escravidão de faraó e os conduziu sob a liderança de Moisés em direção à Canaã – a Terra Prometida. Andaram pelo deserto por quarenta anos até chegarem às margens do rio Jordão que os dividia de Canaã.

Moisés morreu e Deus passou o comando do povo para Josué, que fora auxiliar de Moisés. Ele chamou o povo para a santificação e os líderes do povo foram adiante. Só que havia um grande obstáculo para que o povo entrasse na terra da promessa. O rio Jordão estava transbordando e era humanamente impossível que aquela multidão com crianças, mulheres, idosos e pertences vários atravessasse para o outro lado. Mas o povo itinerante de Deus acostumado com travessias, que já havia atravessado o mar vermelho, certamente não via impossibilidade de atravessar um rio, mesmo que transbordando. Conforme a ordem de Deus, os sacerdotes caminharam em direção às margens do rio, e, quando seus pés tocaram nas águas, elas foram cortadas, e as águas que vinham de cima se amontoaram e pararam de descer no curso do rio. O povo atravessou o rio a pé enxuto (Js 3).

Ao longo de meus quase quarenta e nove anos, já passei por vários cortes e rompimentos. Estou vivendo a transição de mais uma travessia em minha vida e ministério pastoral. Estou atravessando um novo rio e entrando numa terra que antes não conhecia, mesmo que ela faça parte do projeto que Deus tinha para mim desde sempre. Acabei de deixar o pastorado de uma igreja que liderei por vinte e um anos. E mais do que isso, estou saindo da denominação na qual conheci o evangelho há trinta e dois anos. Exatamente hoje, tivemos a assembleia extraordinária da igreja para oficializar a partida das águas.

Já estou do outro lado. Deus tem me conduzido juntamente com alguns irmãos a começarmos a Comunidade do Caminho. Nosso manual é o Evangelho de Jesus. O próprio Jesus é a chave hermenêutica da Bíblia. Estamos deixando a religiosidade evangélica para caminhar na liberdade dos filhos de Deus. Estou me identificando com as palavras de Mário Quintana: “Todos estes que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão. Eu passarinho!”.

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